17 de maio de 2013

Amor Obsessivo (por Hakim Bey)

(texto original de Hakim Bey; tradução: P.R.Barja)

Uma "dialética áspera" nos leva a perceber um gosto impuro na História: sob uma operação de escavação, localizamos uma coleção de antiguidades suprimidas e realizadas – práticas tolas, obsoletas e insatisfatórias como o "Amor Obsessivo". A ideia de Romance é romana apenas no sentido de que foi trazida (de volta) à Europa por Cruzados e Trovadores. A paixão enlouquecida e sem esperança aparece pela primeira vez em textos orientais, como no Anel da Pomba de Ibn Hazm (na verdade uma gíria para para o pênis circuncidado) e nas primeiras versões de Layla e Majnun do Arabistão. Os sufis se apropriaram da linguagem desse tipo de literatura, erotizando assim ainda mais uma cultura e religião já erotizadas.

Mas se o desejo permeia toda a estrutura e o estilo do Islã, continua no entanto a ser um desejo reprimido. "Aquele que ama, mas permanece casto e morre de saudade, alcança o status de um mártir na Jihad", ou seja, chega ao paraíso – ou assim diz a tradição popular (mas talvez espúria) do próprio Profeta. A tensão cortante desse paradoxo cristaliza uma nova categoria de emoção na vida: o amor romântico, baseado no desejo insatisfeito, na separação em vez da união, isto é, em saudade. O período helenístico (como evocado por Kaváfis, por exemplo) forneceu os gêneros para essa convenção – o "romance" em si, o idílio e a lírica erótica – mas o Islã lançou nova luz para as velhas formas com seu sistema de sublimação passional. O fermento greco-egípcio-islâmico adiciona um toque pederasta ao “novo” estilo; além disso, a mulher ideal do romance não é nem mulher nem concubina, mas “alguém proibido”, certamente fora da categoria de simples reprodutor(a). Deste modo, o Romance aparece como um tipo de gnose, em que espírito e carne ocupam posições opostas, talvez também como uma espécie de “libertinagem extremada” em que uma forte emoção é vista como mais satisfatória até mesmo do que a própria satisfação. Visto como "alquimia espiritual", o objetivo da coisa parece ser a interiorização de uma consciência não-ordinária. Este desenvolvimento alcançou graus extremos, mas ainda "dentro da lei” com sufis como Ahmad Ghazzali, Awhadoddin Kermani e Abdol-Rhaman Jami, que testemunharam “a presença do Ser Divino” em certos meninos bonitos e ainda assim permaneceram (supostamente) castos. Os Troubadors (trovadores) disseram o mesmo de suas damas adoradas; Dante Vita Nuova representa o exemplo extremo. Tanto cristãos quanto muçulmanos percorreram precipícios traiçoeiros com esta doutrina de castidade sublime, mas os efeitos espirituais, por vezes, podem ser enormes, como com o iraquiano Fakhroddin, Rumi ou mesmo Dante.
Mas não seria possível ver a questão do desejo de uma perspectiva tântrica e admitir que a "união" em si é também uma forma de iluminação suprema? Tal posição foi tomada por Ibn 'Arabi, que no entanto limitava a discussão a “casamento legal” ou “concubinato”. Como o homossexualismo era proibido na lei islâmica, um sufi que amasse garotos não teria a possibilidade legal de realização sensual. O jurista Ibn Taimiyya uma vez perguntou a um dervixe se ele tinha feito mais do que simplesmente beijar o ser amado. "E se o que eu fiz?", respondeu o interrogado. A resposta seria certamente "culpado por heresia!", isso para não falar de formas consideradas ainda mais graves de crime. Uma resposta semelhante seria dada a qualquer trovador de “tendência tântrica-adúltera”, e talvez tenha sido esse tipo de resposta que levou alguns deles para a heresia organizada do catarismo [1].
O amor romântico no Ocidente recebeu energias do neoplatonismo, assim como o mundo islâmico, e a ideia de romance fornecia uma forma aceitável (ainda ortodoxa) de compromisso entre a moral cristã e o “erocosmo” redescoberto da Antiguidade. Mesmo assim, o equilíbrio era precário: Pico della Mirandola e o pagão Botticelli acabaram nos braços de Savonarola [2].
Uma minoria secreta de nobres renascentistas, clérigos e artistas optou firmemente pelo paganismo clandestino, a Hypnerotomachia Poliphilo [3] ou os monstros do jardim de Bomarzo, sugerindo a existência de uma facção ou seita “tântrica”. Mas para a maioria dos platônicos, a ideia de um amor baseado em espera solitária servia a propósitos ortodoxos e alegóricos, em que o sujeito amado só poderia ser uma sombra distante do real (como exemplificado por Santa Teresa e São João da Cruz) e só poderia ser amado de acordo com um “código cavalheiresco” casto e penitencial. A questão central do romance “A Morte de Artur” (de Malory) é que Lancelot não consegue sustentar o ideal cavalheiresco, amando carnalmente Guinevere em vez de se contentar apenas com o espírito.
O surgimento do Capitalismo exerce um estranho efeito sobre a ideia de romance. Só posso expressar isto com uma comparação absurda: é como se o ser amado se tornasse “o investimento perfeito”, sempre desejado, sempre pago, mas nunca realmente adorado. A abnegação do romance se harmoniza perfeitamente com a auto-negação do Capitalismo. Mais do que limitar suas exigências simplesmente à moral ou à castidade, o capital exige escassez, tanto de produção como de prazer erótico. A religião proíbe a sexualidade, emprestando uma aura de glamour à abstinência; o capital remove a sexualidade, mergulhando-a em desespero. A ideia de romance agora é o que leva ao suicídio de Werther, ao desgosto de Byron, à castidade dos dândis. Neste sentido, o romance se tornará a obsessão bidimensional perfeita da música popular e da publicidade, fornecendo um rastro de utopia dentro da reprodução infinita da mercadoria.
Em resposta a esta situação, os tempos modernos têm oferecido dois diferentes vereditos sobre o romance, aparentemente opostos. Um, o amor louco surrealista, claramente pertence à tradição romântica, mas propõe uma solução radical para o paradoxo do desejo, combinando a idéia de sublimação com a perspectiva tântrica. Opondo-se à escassez (ou "praga emocional", como diria Reich) do capitalismo, o Surrealismo propõe um excesso (transgressor) do desejo mais obsessivo e da realização mais sensual. O que o romance de Nezami ou Malory tinham separado (a espera e a união), os surrealistas propunham que se reunisse. O efeito era para ser explosivo, literalmente revolucionário.
O segundo ponto de vista relevante aqui também foi revolucionário, mas “clássico” ao invés de “romântico”. O anarquista-individualista John Henry Mackay desesperou-se com o amor romântico, que ele só podia ver como contaminado com as formas sociais de propriedade e alienação. O amante romântico espera “possuir” ou “ser possuído” pelo ser amado. Se o casamento é simplesmente prostituição legalizada (a análise anarquista usual), Mackay descobriu que o próprio amor havia virado uma mercadoria. O amor romântico é uma doença do ego e sua relação com a “propriedade”; em oposição a isto, Mackay propôs a amizade erótica, livre de relações de propriedade, com base na generosidade em vez de espera e retirada (ou seja, escassez): um amor entre sujeitos autônomos em relação de igualdade.
Apesar de Mackay e os surrealistas parecem opostos, num ponto eles concordam: o amor é soberano. Além disso, ambos rejeitam a herança platônica da “espera sem esperança”, agora vista como autodestrutiva - talvez uma medida da dívida que ambos (anarquistas e surrealistas) têm com Nietzsche. Mackay exige um Eros apolíneo, os surrealistas (claro) optam por Dionísio, obsessivo, perigoso. Mas ambos revoltam-se contra o “romance".
Hoje em dia, estas duas soluções para o problema do romance parecem ainda abertas, possíveis. Talvez a atmosfera pareça ainda mais poluída com imagens degradadas de desejo do que nos dias de Mackay ou Breton, mas não parece ter havido mudanças qualitativas nas relações entre Amor e Capitalismo tardio desde então. Admito minha preferência filosófica pela posição de Mackay porque tenho sido incapaz de sublimar o desejo num contexto de obsessão desesperada sem me sentir miserável e a felicidade (objetivo de Mackay) parece nascer da desistência de falso cavalheirismo e abnegado dandismo em favor de amores mais reais e "pagãos". Ainda assim, deve-se admitir que tanto “separação” quanto “união” são estados não-ordinários de consciência. Desejo obsessivo intenso constitui um “estado místico” que só precisa de um traço de religião para se cristalizar como êxtase neoplatônico. Mas nós, românticos, devemos lembrar que a felicidade também possui um elemento completamente alheio a qualquer aconchego morno-burguês ou covardia insípida. A felicidade expressa um aspecto festivo e até mesmo insurrecional que lhe dá – paradoxalmente – sua própria aura romântica. Talvez possamos imaginar uma síntese de Mackay e Breton – um guarda-chuva e uma máquina de costura numa ópera de mesa – e construir uma utopia baseada “na generosidade, tanto quanto na obsessão” (mais uma vez, vem a tentação de fundir Nietzsche com Charles Fourier e sua “Atração Fatal”); mas, na verdade, eu sonhei com isso (lembro, de repente, como se fosse literalmente um sonho) – e isso assumiu uma realidade tentadora filtrada para minha vida (em certas Zonas Autônomas Temporárias), um tempo-espaço “impossível”... e toda minha teoria se baseia nesta breve pista.
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[1] Os seguidores do catarismo deviam abster-se da alimentação carnívora, de atividades sexuais, evitar qualquer forma de violência; além disso, não poderiam possuir nenhum bem material (N.T.)
[2] Padre Dominicano que, na Florença do séc.XV, opôs-se fortemente à vida pagã e à imoralidade inclusive (principalmente?) na corte de Lourenço de Médici (N.T.)
[3] Um dos livros mais misteriosos do período renascentista, tendo sido impresso (em grego) no ano de 1499. Inclui diversas passagens oníricas e eróticas, com ilustrações em xilogravura.

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