29 de novembro de 2013

Encontro com direito a manobrista


     Estava no meio do expediente quando ligaram do banco perguntando por ele. Assustou-se: disseram seu nome completo.
     "Sou eu...", respondeu, ressabiado. Mas não era pra tanto. A moça do outro lado da linha era só gentilezas. Moça? Sim, era moça com certeza, e pela voz devia ser linda. E fazia perguntas, firme e delicada ao mesmo tempo. Quando ele estaria livre para uma conversa? Hmm, que coisa mais inesperada, uma pergunta daquelas... aí resolveu entrar no jogo: "um minutinho, vou consultar a agenda..."
     Ele não tinha agenda há anos. A última se perdera no tempo e até na memória. Depois de um minuto: "tenho a quinta-feira, no período da manhã", respondeu novamente ressabiado, achando que a qualquer momento anunciariam o trote. 
     "Excelente! Que bom! Venha às dez horas, então", a moça firme e bonita parecia animada ao explicar como ele faria para chegar "lá". "O senhor não se preocupe: temos estacionamento com manobrista no local... estarei à sua espera!"
     Despediram-se cordialmente.
     Chegou a quinta-feira. Às nove, ele já estava na expectativa. "É só às dez", pensou. "Fica até chato chegar cedo. Melhor olhar as notícias antes..."
     Quando percebeu... já eram quase dez horas! Saiu esbaforido, camiseta e bermuda, sandália velha nos pés. "Tomara que a sandália aguente - e que a moça não repare."
     Dez horas. Faltando uma quadra para chegar, toca o telefone. "O senhor vem, não é? Não se esqueceu de mim..."
     Esquecer como? "Não, não, fique tranquila. Estou virando a esquina...!"
     Chegou. Dois seguranças - de terno! - o receberam. Cumprimentaram-no - pelo nome completo - e ele entrou. Constrangido, atrapalhou-se com as duas portas automáticas. Parou em frente à segunda porta, de vidro. Aliás, parecia que tudo ali era de vidro. Não tudo: do outro lado do vidro da porta, dois olhos azuis o encaravam. Gentis, pacientes: dois olhos - e um sorriso discreto.
     Ela era jovem. Linda. Amável: "Tudo certo? O senhor foi bem atendido pelo manobrista?"
     "Vim a pé..." (num quase sussurro envergonhado) "Caminhando..."
     E aí se encheu mesmo de vergonha: naquele espaço tão amplo e elegante, com várias salas de vidros esfumaçados, só ele era descuidado. Era ele o único elemento estranho no local.
     Mas ela era hábil e soube dissipar a tensão rapidamente. Apresentou-o a alguém da diretoria, ao gerente de investimentos - e ofereceu café. "Ou deseja alguma outra coisa?"
   "Café... café está ótimo."
     Pode parecer até estranho, colocando desta forma, mas foi um café inesquecível. Forte, encorpado - mas o principal nem era o café em si. Havia um ar quase reverencial na moça. Ela o serviu com elegância e graça. Esguia, parecia modelo de capa de revista. E aqueles olhos...
     "Vamos a um ambiente reservado, conversar um pouco", disse ela, e abriu de leve a porta de uma daquelas salas. "Epa! Desculpe" - e fechou a porta rapidamente. "Estão usando esta sala, vamos para o ambiente ao lado" - e foram.
     Enfim, a sós. E ela começou a fazer um monte de perguntas. Perguntou inclusive se ele estaria disponível para breves encontros semanais. Ele sentiu necessidade de esclarecer. "Sabe como é... além do serviço, eu tenho mulher e filho, então tem que ver direitinho essas coisas de horário..."
     "Ah! Então o senhor é casado?" - leve surpresa no tom de voz da moça. "Tudo bem, claro", e retomou o controle, novamente absoluta.
     E aí ela disse, em tom de confidência, consultando uma ficha: "Sabe, consta aqui que o senhor é um excelente investidor...! Sua renda mensal gira em torno de X, não?"
     "Ah... hmm... não... não, na verdade é muito menos que isso" - ele gaguejava. "Veja, eu sou professor..." - e na mesma hora voltou o incômodo: começou a achar a bermuda mais gasta; a sandália, mais velha...
     Tudo finalmente fazia sentido: desde o primeiro telefonema, era engano.
     Saiu de certo modo mais aliviado, sorrindo para os seguranças e o manobrista. "Coitados, trabalhando de terno num calor desses..."

P. R. Barja

27 de novembro de 2013

Sobre cavalos e palhaços


CAVALO: 
um dos mais belos animais sobre a face da Terra. Elegante...! 
Se a gente parar pra pensar, ser chamado de "cavalo"
só pode ser elogio...!
PALHAÇO: 
um dos mais puros seres vivos sobre a face da Terra. 
Desajeitado - pois a Vida é também tropeço. 
Brincalhão - pois a Vida é também festa.
Se a gente parar pra pensar, ser chamado de "palhaço"
só pode ser elogio.
E é!
(Calvin Clown
- obs.: um pensamento tão profundo e maravilhoso só poderia ter vindo deste gênio sensível)

23 de novembro de 2013

A MELHOR GOIABA

(ou "Desventuras da Elite Acadêmica Paulista em Cuba")

   Situação real vivida num congresso em Cuba, em maio de 2011: participando de um evento científico que envolvia pesquisadores do mundo inteiro, fomos convidados a conhecer fazendas participantes da rede de produção agrícola do governo cubano. Já havíamos visitado centros de pesquisa agropecuária na região de La Habana e estava claro que um dos focos mais importantes da pesquisa cubana era o manejo ecológico / controle biológico das pragas, praticamente zerando o uso de agrotóxicos e pesticidas. A única coisa chata é que, durante a visita, um pequeno grupo de brasileiros da “elite acadêmica paulista” parecia se divertir minimizando os resultados cubanos. Do alto de sua sabedoria ímpar, proferiam julgamentos como:

– Isso é extremamente precário, não funciona, que absurdo! Coisa de quem não tem dinheiro para investir!

   Chegando a uma das fazendas, os organizadores do evento distribuíram goiabas aos congressistas. “Produção local”, diziam, orgulhosos. Mais que depressa, os três ou quatro chatos paulistas começaram a tirar sarro:

– Deve estar cheio de bicho, com certeza tem bicho, cuidado! Procura, que tem bicho aí!

   Que vergonha que eu sentia de ter aquele infelizes como compatriotas: todo mundo saboreava as frutas e eles (3 ou 4 apenas) ali, examinando minuciosamente as goiabas.

   Num certo momento, um deles gritou, exultante:

– Não disse? Achei! Olha aqui, gente, TEM BICHO na goiaba cubana!

   O grupinho se amontoou em cima da goiaba para conferir... e aí rolou o vexame total. Muito sem jeito, um deles confessou:

– Xi, não é bicho não... é um fiapinho da goiaba mesmo...

   Olharam uns pros outros meio sem graça e acabaram comendo as goiabas em silêncio.
Paulo R. Barja

17 de novembro de 2013