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13 de fevereiro de 2017

Quem Paga Essa Conta?

(artigo de Oswaldo Almeida Jr e Paulo Roxo Barja)

     Não é novidade que os investimentos em arte e cultura sejam vistos, por boa parte dos gestores públicos, como dinheiro jogado fora. Os argumentos usuais são o de que haveria áreas também deficitárias em que o recurso seria mais importante e o de que dinheiro público não deve servir à manutenção de artistas que, “se fossem bons mesmo”, deveriam buscar sua subsistência no mercado. Há aqui, no entanto, um vício de origem. É comum que se veja o trabalho com cultura como algo importante para artistas e produtores, mas não para a população. Em outras palavras, há quem ignore o valor do trabalho artístico como ação voltada à comunidade e pense que a verba para cultura serve apenas para que os artistas paguem suas contas e “façam festas”. Pensando assim, caem no senso comum de indicar diversas áreas em que o recurso seria melhor aproveitado.

     No entanto, são raras as críticas a investimentos na área de desenvolvimento econômico. Os milhões investidos em parques tecnológicos ou a renúncia fiscal voltada à atração de empresas são vistos como investimento necessário e urgente. Mas esses recursos não beneficiam diretamente a população; assim como na área da cultura, vão para agentes que (espera-se) transformarão o recurso em resultados para o cidadão. Mesmo em áreas como Saúde, o recurso público é destinado a profissionais que, a partir disso, criam ações voltadas ao atendimento das pessoas. Assim, por que só os agentes culturais são vistos como “aproveitadores do dinheiro público”?

     Na Cultura, ao contrário do que ocorre na economia, os números de atendimento à população parecem não ter importância, mesmo com dados concretos a justificar os investimentos. Muitos gestores – e parte da sociedade – ignoram os resultados da ação cultural no desenvolvimento humano (algo intangível, subjetivo); assim, quando se fala em cortes no orçamento, começam cortando recursos da Cultura. Imagine agora o que aconteceria se as pessoas se recusassem a ouvir o relato de um amigo que defendesse o corte de verbas para Cultura, mas quisesse contar suas andanças pelos museus de Paris ou suas leituras mais recentes. Chato, né?

     Para avaliar a falta que as ações artísticas fariam no cotidiano de uma população, imaginem que por um dado período todos os cinemas e teatros fossem fechados e todos os shows e saraus proibidos, assim como as festas de cultura popular e as aulas de Arte nas escolas. Há quem defenda isto, “em nome da ordem e da produtividade”! Mas viver assim seria triste, e pouco humano...

     Felizmente, a arte dispensa autorizações para sua realização. Independentemente do poder público e da verba, a arte continuará existindo – e resistindo. Mas, sem recursos, a população ficará sem acesso à cultura produzida em sua comunidade. Sem recursos públicos, os resultados do trabalho artístico e cultural ficarão restritos a poucos privilegiados. E o povo ficará sujeito ao mínimo que o Estado estiver disposto a oferecer: o mínimo de renda, o mínimo de cultura, o mínimo de saúde. Cuidado.

25 de janeiro de 2017

Arte e Estado

(Versão condensada e comentada por Paulo Barja para o texto “Por qual dinheiro? O artista diante do poder”, de Andrzej Wajda, in: WAJDA, A. Um Cinema Chamado Desejo. Petrópolis: Campus, 1989)

   Uma vez que boa parte da produção artística é, direta ou indiretamente, financiada pelo Estado, colocam-se diante de nós algumas perguntas. A principal delas: quem, afinal, é o responsável pela obra produzida? Não importa quem financia: em última análise, o responsável é sempre o artista – e é assim que tem que ser.
   Para o Congresso da Cultura Polonesa de 1981, Andrzej Wajda preparou o texto “O mecenato do Estado e a liberdade do artista”, que em linhas gerais diz o seguinte:

   (...) O mecenato do Estado tem funções diferentes e uma ingerência diferente nos diferentes domínios das artes. Há domínios em que a ingerência do Estado é limitada ou pode até ser ignorada. Assim, pode-se pensar de graça. A escrita de um romance custa uma soma irrisória. (...) Da mesma forma, pode-se, por uma soma um pouco maior, produzir obras de artes plásticas que sejam belas, importantes, duradouras. O cinema, infelizmente, qualquer que seja seu tema, precisa de dinheiro, de milhões (vale o mesmo para uma grande orquestra ou para a produção de um grande musical).

   Pois bem: o Estado destinou do seu Tesouro uma soma milionária para meus filmes. Ora, de acordo com minha consciência de artista, não contraí por isso nenhuma obrigação ideológica para com esse mecenas. Isso significa que, usando dinheiro público para minha produção artística, enganei o Estado? Não, porque tomei dinheiro público e o utilizei para o bem público. (...) A existência de público para o trabalho sustenta minha convicção de que aquela arte era necessária (e não um luxo ou uma extravagância).

   Podem me responder que muitas obras de arte ruins mobilizam grande público. Sim, mas é certo que não haveria utilidade pública nenhuma em salas de espetáculo onde se sentasse sozinho e contente consigo mesmo apenas o agente financiador - o Estado (pensem: qual a utilidade pública de salas de espetáculo vazias? Isso é tão absurdo quanto limitar o acesso de alunos a uma biblioteca escolar “para evitar bagunça”).

   Eu recebia, assim, o dinheiro do Estado mecenas sentindo-me livre, porque jamais considerei que se tratasse de meu dinheiro. Sempre me esforcei para que o dinheiro retornasse, de algum modo, ao lugar de onde fora emprestado: o Tesouro nacional (percebam a ética do processo: a produção não se fez pelo dinheiro! O dinheiro é que foi disponibilizado para a produção. Isso faz toda a diferença).
Em países ocidentais, é considerado produtor e mesmo, em certa medida, criador de uma obra de arte aquele que consegue reunir o capital necessário para sua produção. (...) Contudo, aprendi muito jovem que o valor supremo é o trabalho. Assim, o criador não pode ser outro senão quem contribui com mais trabalho: a equipe e a pessoa que a dirige. Nunca me preocupei muito com a opinião das autoridades, sua reserva ou mesmo oposição a alguns de meus projetos. Minha verdadeira preocupação era com o público, sobretudo “se eu conseguiria me comunicar com ele” (Wajda defende que o financiador não tenha ingerência sobre o trabalho do artista. Faço uma analogia futebolística: a Nike não poderia influenciar na escalação da seleção brasileira. Por sinal, seria fantástico aplicar isso à política: o financiador de campanha não poderia ter ingerência sobre o trabalho do político, que deveria sempre representar os interesses do povo. Sabemos que geralmente não é bem o que acontece).

   (...) Por que o artista deve ser livre? Para poder penetrar no espírito das pessoas e expressar suas inquietudes, esperanças e ilusões! O Estado não saberia fazer isso em meu lugar. Por que um funcionário do Estado conheceria esse segredo melhor do que o artista? Em virtude de sua função? Acho que a paz silenciosa dos escritórios oficiais e roteiros longamente debatidos e preparados podem chegar a uma revelação... Na maioria das vezes, lengalengas dessa ordem dão lugar a obras indigestas, sem alma nem rosto (este é nosso argumento para defender que a gestão cultural seja exercida por gente próxima à área e aberta ao diálogo, e não entregue a “qualquer bom administrador, de preferência com formação jurídica”, como vemos ocorrer com triste frequência).

   Somente o artista pode responder pelo que diz ao público. Empregando sua liberdade, o artista deve, às vezes, fazer seu público compreender o que não teria condições de perceber sem a obra de arte. Ele tem necessidade de uma liberdade dupla: em relação ao poder e em relação ao público. Apenas os maiores conseguem atingir essa liberdade e merecem nosso reconhecimento. Quanto ao mecenas, que ele se lembre: a Arte só se desenvolve à medida que o povo consegue impor ao poder importantes concessões.

*   *   *

Uma colocação anticlímax ao final deste texto: o discurso original de Wajda nunca foi proferido, pois na ocasião o governo polonês cancelou o congresso. É triste, mas parece haver analogia entre esse fato e diversas situações vividas no Brasil. Diante do fechamento de oficinas culturais e dos repetidos cortes de verbas públicas para a cultura, perguntamos: será que os cortes são uma punição imposta aos artistas pelo Estado, que deseja controlar a criação artística e não consegue entender ou aceitar a liberdade criativa? Reflitamos.