Mostrando postagens com marcador prosa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador prosa. Mostrar todas as postagens

18 de outubro de 2014

Crônica - O Nó da Gravata

(para meu pai, o eterno maestro Barja)


     Tudo que é tocado por aqueles que amamos adquire novo significado para nós. Se era um objeto simples, agora é especial; se era banal, agora é único. Pode até virar amuleto, símbolo do amor, do caráter eterno do afeto – e da saudade.
     Penso nisso a partir de uma simples gravata. E é particularmente curioso que seja uma gravata, já que praticamente não uso gravatas. Chego a passar anos feliz, sem usar gravata uma única vez. Mesmo em ocasiões formais, dou quase sempre um jeito de abdicar do terno em favor de um blaser e uma calça social, só para me sentir absolutamente desobrigado de usar gravata. Mas já cheguei mesmo a cometer o que para alguns seria pecado: colocar o terno e não colocar a gravata.
     Acho que há apenas uma ocasião em que aceito o formalismo no vestuário, e de bom grado. É quando me convidam para ser padrinho de casamento. Acho bonito, uma honraria. Penso assim: até mesmo o convite para uma palestra pode ser uma forma de expor a pessoa a uma situação difícil, mas ninguém convidaria uma pessoa para ser padrinho se não tivesse uma dose ao menos bem razoável de confiança e cumplicidade. 
     Nessas ocasiões, sei que esperam que eu use gravata. E uso gravata.
     Amanhã viverei uma dessas situações. Serei padrinho de casamento. Usarei gravata, depois de anos com o pescoço livre. Nesse caso, o primeiro a fazer é... achar a gravata.
Primeira surpresa: após intensa prospecção, descubro que tenho nada mais, nada menos que três gravatas! Incrível, dado que só devo ter usado gravata sete ou oito vezes na vida.
Mas aí vem a segunda constatação surpreendente, e é essa que me lança ao lirismo mais deslavado, desses de encharcar lenço e fazer o coração transbordar: uma das gravatas está com o nó pronto.
     Foi meu pai que fez esse nó.
     Meu pai partiu deste mundo há alguns anos. Acho que foi quando as asas cresceram demais para caber no terno – que, ao contrário de mim, ele usava com frequência. E meu pai sabia da minha aflição e dificuldade em colocar uma gravata. Acho até que a dificuldade nascia da aflição. Seja como for, eu simplesmente apanhava da gravata, não aprendia a dar o nó. E ele, após diversas tentativas de me ensinar, com paciência e amor havia feito o nó daquela gravata em seu próprio pescoço. Depois, havia afrouxado o nó: “pronto, é só você colocar e ajustar agora”.
     Sei que é simples, sei que pode soar ridículo até. Mas quanto amor, quando amor ali!
     E quanto amor, pai, aqui, ao olhar a gravata que amorosamente já enlaçou teu pescoço antes de ser por mim utilizada e guardada por anos, até a epifania deste momento.
     “Pouco amor não é amor”, já dizia Nelson Rodrigues. Pai, eu te amo tanto, tanto que não tenho medo algum do ridículo ao dizer: este nó eu vou guardar para sempre.


Paulo Barja

Maestro Barja, de gravata, no dia da formatura do autor do blog

29 de novembro de 2013

Encontro com direito a manobrista


     Estava no meio do expediente quando ligaram do banco perguntando por ele. Assustou-se: disseram seu nome completo.
     "Sou eu...", respondeu, ressabiado. Mas não era pra tanto. A moça do outro lado da linha era só gentilezas. Moça? Sim, era moça com certeza, e pela voz devia ser linda. E fazia perguntas, firme e delicada ao mesmo tempo. Quando ele estaria livre para uma conversa? Hmm, que coisa mais inesperada, uma pergunta daquelas... aí resolveu entrar no jogo: "um minutinho, vou consultar a agenda..."
     Ele não tinha agenda há anos. A última se perdera no tempo e até na memória. Depois de um minuto: "tenho a quinta-feira, no período da manhã", respondeu novamente ressabiado, achando que a qualquer momento anunciariam o trote. 
     "Excelente! Que bom! Venha às dez horas, então", a moça firme e bonita parecia animada ao explicar como ele faria para chegar "lá". "O senhor não se preocupe: temos estacionamento com manobrista no local... estarei à sua espera!"
     Despediram-se cordialmente.
     Chegou a quinta-feira. Às nove, ele já estava na expectativa. "É só às dez", pensou. "Fica até chato chegar cedo. Melhor olhar as notícias antes..."
     Quando percebeu... já eram quase dez horas! Saiu esbaforido, camiseta e bermuda, sandália velha nos pés. "Tomara que a sandália aguente - e que a moça não repare."
     Dez horas. Faltando uma quadra para chegar, toca o telefone. "O senhor vem, não é? Não se esqueceu de mim..."
     Esquecer como? "Não, não, fique tranquila. Estou virando a esquina...!"
     Chegou. Dois seguranças - de terno! - o receberam. Cumprimentaram-no - pelo nome completo - e ele entrou. Constrangido, atrapalhou-se com as duas portas automáticas. Parou em frente à segunda porta, de vidro. Aliás, parecia que tudo ali era de vidro. Não tudo: do outro lado do vidro da porta, dois olhos azuis o encaravam. Gentis, pacientes: dois olhos - e um sorriso discreto.
     Ela era jovem. Linda. Amável: "Tudo certo? O senhor foi bem atendido pelo manobrista?"
     "Vim a pé..." (num quase sussurro envergonhado) "Caminhando..."
     E aí se encheu mesmo de vergonha: naquele espaço tão amplo e elegante, com várias salas de vidros esfumaçados, só ele era descuidado. Era ele o único elemento estranho no local.
     Mas ela era hábil e soube dissipar a tensão rapidamente. Apresentou-o a alguém da diretoria, ao gerente de investimentos - e ofereceu café. "Ou deseja alguma outra coisa?"
   "Café... café está ótimo."
     Pode parecer até estranho, colocando desta forma, mas foi um café inesquecível. Forte, encorpado - mas o principal nem era o café em si. Havia um ar quase reverencial na moça. Ela o serviu com elegância e graça. Esguia, parecia modelo de capa de revista. E aqueles olhos...
     "Vamos a um ambiente reservado, conversar um pouco", disse ela, e abriu de leve a porta de uma daquelas salas. "Epa! Desculpe" - e fechou a porta rapidamente. "Estão usando esta sala, vamos para o ambiente ao lado" - e foram.
     Enfim, a sós. E ela começou a fazer um monte de perguntas. Perguntou inclusive se ele estaria disponível para breves encontros semanais. Ele sentiu necessidade de esclarecer. "Sabe como é... além do serviço, eu tenho mulher e filho, então tem que ver direitinho essas coisas de horário..."
     "Ah! Então o senhor é casado?" - leve surpresa no tom de voz da moça. "Tudo bem, claro", e retomou o controle, novamente absoluta.
     E aí ela disse, em tom de confidência, consultando uma ficha: "Sabe, consta aqui que o senhor é um excelente investidor...! Sua renda mensal gira em torno de X, não?"
     "Ah... hmm... não... não, na verdade é muito menos que isso" - ele gaguejava. "Veja, eu sou professor..." - e na mesma hora voltou o incômodo: começou a achar a bermuda mais gasta; a sandália, mais velha...
     Tudo finalmente fazia sentido: desde o primeiro telefonema, era engano.
     Saiu de certo modo mais aliviado, sorrindo para os seguranças e o manobrista. "Coitados, trabalhando de terno num calor desses..."

P. R. Barja

27 de novembro de 2013

Sobre cavalos e palhaços


CAVALO: 
um dos mais belos animais sobre a face da Terra. Elegante...! 
Se a gente parar pra pensar, ser chamado de "cavalo"
só pode ser elogio...!
PALHAÇO: 
um dos mais puros seres vivos sobre a face da Terra. 
Desajeitado - pois a Vida é também tropeço. 
Brincalhão - pois a Vida é também festa.
Se a gente parar pra pensar, ser chamado de "palhaço"
só pode ser elogio.
E é!
(Calvin Clown
- obs.: um pensamento tão profundo e maravilhoso só poderia ter vindo deste gênio sensível)

27 de outubro de 2013

Breve Crônica de Domingo - Religiosidade


Na manhã de domingo, no caminho de casa até o mercado, vou reparando nessas pequenas grandes coisas que nos encantam: algumas folhas voando, a brisa agradável, flores de cores vivas, o azul da manhã tranquila...
De repente, meu sentimento de calma e contemplação é interrompido por um barulho (peço perdão mas não encontro palavra melhor). Aos poucos, vou me aproximando da fonte do ruído e percebo que se trata de uma dessas igrejas que organiza cultos nas manhãs de domingo. A uma quadra de distância, já se ouvia a barulheira (embora seja muito difícil entender a letra). Penso: lá dentro do “templo” (chamemos assim), o barulho deve ser ensurdecedor. E lembro de um cordel escrito anos atrás, cujo refrão dizia justamente:
Coitado de Jesus, que está pregado
E tem que exercitar a paciência! *

São dez horas da manhã. Quando estou para atravessar a rua (meu objetivo é o Mercado Municipal), ouço o líder da cantoria dizer ao microfone algo como “Vamos cantar... vamos pular, gente!”. Aquilo me parece estranho. A essas alturas, meu sentimento de contemplação (ou beatitude, ou religiosidade) já estava distante...
Chego então ao Mercado Municipal. E ali se dá a epifania: enquanto escolho cebola, alho e tomate, ouço um dos feirantes cantar baixinho uma canção da Legião Urbana:
É preciso amar as pessoas
     Como se não houvesse amanhã... **

Nesse instante sou invadido por um profundo sentimento de religiosidade: aquela sensação de plena integração (o religare) com o universo.
Volto feliz, tranquilo. E pensando: afinal, onde é que mora a religiosidade? Onde se vivencia realmente o Amor ao próximo?
Talvez eu não entenda muita coisa nessa vida. Mas acho que é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...

P.Barja

* Refrão do Cordel Joseense “Jesus Pregado” (P.Barja), de 2009

* Trecho de “Pais e Filhos” (Legião Urbana)

11 de julho de 2013

Sementes


Às 6h15, acordo semeando sonhos, novas ilusões para os novos homens de cada dia. Sementes. Muitas não frutificarão, cortadas pela foice frequentemente violenta do cotidiano. Outras secarão, ou serão contaminadas por desilusão já nas primeiras 24h. Mas, aqui e ali, num canteiro despreocupado, algumas sementes vão vicejar. Superando a impossibilidade, vão se desenvolver. Dia a dia, silenciosamente no início, vão ganhar força. E há de nascer ao menos um poema. 
Um poema cuja simples vontade de nascer será mais bela que os próprios versos.

P.R.Barja

29 de janeiro de 2013

Um bilhete para Bukowski


Nasci e vivo nesse (patético?) modo “continuamente ligado”.
Muitas vezes, diante de seres humanos bons e maus igualmente, meus sentidos se aguçam, intensificam, mostrando que não é possível desistir do ser humano.
Procuro ser comedido: respeito as falsas distâncias imaginadas pelos outros, até porque não desejo assustar ninguém.
Mas não finjo entender – e este é o ponto fraco que tem me levado à maioria das encrencas. Tentando ser honesto com os outros, muitas vezes sinto a alma ampliar-se livremente para além de mim, numa espécie de planície espiritual.
Não deixo nada pra lá. Meu cérebro não tem trancas: assim escuto, assim respondo.
E ninguém é bronco demais que não perceba que estou integralmente ali.

P.R.Barja