13 de fevereiro de 2017

O Impacto do Ensino da Arte (ouvindo Camille Paglia)


(obs.: versão condensada de entrevista com Camille Paglia publicada originalmente no site http://fronteiras.com/canalfronteiras/entrevistas/?16,341, sob o título "O impacto do ensino da arte (ou da falta dele) na percepção do mundo")

   (...) A escritora norte-americana Camille Paglia é conhecida por desafiar as ideias em voga nos mais diversos campos. Professora de Humanidades e Estudos Midiáticos da University of the Arts da Filadélfia, é autora de obras que misturam cultura pop, história da arte, sexualidade e os diferentes meios que tornam o homem um espectador: seja na frente da televisão, de um Pollock ou de sua própria vida.
   Em sua mais recente obra, Imagens cintilantes - uma viagem através da arte desde o Egito a ‘Star Wars’ (Apicuri, 2014), Camille retorna ao local que a consagrou, a crítica à arte contemporânea. No livro, a autora de Personas Sexuais analisa 29 obras que considera fundamentais na História da Arte e afirma, com certa decepção, que os jovens deixaram ofícios como a pintura e a escultura para emprestar sua lealdade à tecnologia e ao design industrial.
   Em entrevista, Paglia resumiu o panorama que motivou a produção do livro:         “O olho sofre com anúncios piscando na rede. Para se defender, o cérebro fecha avenidas inteiras de observação e intuição. A experiência digital é chamada interativa, mas o que eu vejo como professora é uma crescente passividade dos jovens, bombardeados com os estímulos caóticos de seus aparelhos digitais. Pior: eles se tornam tão dependentes da comunicação textual e correio eletrônico que estão perdendo a linguagem do corpo.” De acordo com ela, esta degeneração gradativa da percepção/expressão nasce do mercado – das galerias às instituições de ensino.
   Segundo a norte-americana, este mercado não é apenas um objeto a ser combatido, mas sim um profundo problema de visão sobre a vida, que parte, também, do espectador. Ensinado a enxergar o mundo apenas de forma política e ideológica, o homem contemporâneo teria perdido a esfera do sensível, do invisível, do metafísico.     A isso, somam-se a rapidez da tecnologia e a promessa de lucro aos artistas, que acabam trocando o lento processo de aprendizado por contratos exclusivos ou por telas digitais.
Longe de ser uma questão restrita a quadros e esculturas, este contexto de constante estímulo atinge a sociedade como um todo, como Camille argumenta logo na introdução da obra:
   “A vida moderna é um mar de imagens. Nossos olhos são inundados por figuras reluzentes e blocos de texto explodindo sobre nós por todos os lados. O cérebro, superestimulado, deve se adaptar rapidamente para conseguir processar esse rodopiante bombardeio de dados desconexos. A cultura no mundo desenvolvido é hoje definida, em ampla medida, pela onipresente mídia de massa e pelos aparelhos eletrônicos servilmente monitorados por seus proprietários. A intensa expansão da comunicação global instantânea pode ter concedido espaço a um grande número de vozes individuais, mas, paradoxalmente, esta mesma individualidade se vê na ameaça de sucumbir.
   Como sobreviver nesta era da vertigem? Precisamos reaprender a ver. Em meio à tamanha e neurótica poluição visual, é essencial encontrar o foco, a base da estabilidade, da identidade e da direção na vida. As crianças, sobretudo, merecem ser salvas deste turbilhão de imagens tremeluzentes que as vicia em distrações sedutoras e fazem a realidade social, com seus deveres e preocupações éticas, parecer estúpida e fútil. A única maneira de ensinar o foco é oferecer aos olhos oportunidades de percepção estável – e o melhor caminho para isso é a contemplação da arte.”
   Ainda em seu texto introdutório, Camille critica as instituições de ensino por falharem completamente no ensino da visão que nos tiraria desta vertigem. Se precisamos reaprender a ver, as faculdades de arte, para ela, poderiam ser consideradas mais um empecilho do que uma parceira nesta tarefa. Leia, abaixo, o que ela tem dizer sobre isso a partir de excerto do livro Imagens cintilantes:
   “É de uma obviedade alarmante que as escolas públicas norte-americanas têm feito um mau serviço na educação artística dos estudantes. Da pré-escola em diante, a arte é tratatda como uma prática terapêutica – projetos com cartolina do tipo “faça você mesmo” e pinturas com os dedos para liberar a criatividade oculta das crianças. Mas o que de fato faz falta é um quadro histórico de conhecimentos objetivos acerca da arte. As esporádicas excursões ao museu, mesmo que haja um por perto, são inadequadas. Os cursos de história da arte deveriam ser integrados ao currículo do ensino primário, fundamental e médio - uma introdução básica à grande arte e a seus estilos e símbolos. O movimento multiculturalista que se seguiu à década de 1960 ofereceu uma tremenda oportunidade para expandir o nosso conhecimento do mundo da arte, mas suas abordagens têm com demasiada frequência sacrificado a erudição e a cronologia em favor de um partidarismo sentimental e de queixumes rotineiros.
   Era de se esperar que as faculdades que oferecem cursos de artes liberais dessem ênfase à educação artística, mas não é esse o caso. O atual currículo, de estilo self-service, torna os cursos de história da arte disponíveis, mas não obrigatórios. Com raras exceções, as universidades abandonaram toda noção de um núcleo de aprendizado. Os departamentos de humanidades oferecem uma mixórdia de cursos feitos sob medida para os interesses de pesquisa dos professores. Tem havido um gradual eclipse, nos Estados Unidos, do curso de história geral da arte, que cobria magistralmente, em dois semestres, da arte das cavernas ao modernismo. Apesar de sua popularidade entre os estudantes, que se recordam deles como pontos culminantes em suas vivências universitárias, os cursos gerais são cada vez mais vistos como excessivamente pesados, superficiais ou eurocêntricos – e não há mais vontade institucional de estendê-los para a arte mundial.
   Jovens professores, criados em meio ao pós-estruturalismo, com sua suspeita mecânica da cultura, consideram-se especialistas, e não generalistas, e não foram treinados para pensar sobre trajetórias tão vastas. O resultado final é que muitos alunos de humanidades se formam com pouco senso da cronologia ou da deslumbrante procissão de estilos que constituía a arte ocidental.
   A questão mais importante acerca da arte é: o que permanece e por quê?
   As definições de beleza e os padrões de gosto mudam constantemente, mas padrões persistentes subsistem. Defendo uma visão cíclica da cultura: os estilos crescem, chegam ao ápice e decaem para tornarem a florescer, num renascer periódico. A linha de influência artística pode ser vista claramente na cultura ocidental, com várias interrupções e recuperações, desde o Egito antigo até hoje – uma saga de 5 mil anos que não é (como diria o jargão acadêmico) uma “narrativa” arbitrária e imperialista. Grande número de objetos teimosamente concretos – não apenas “textos” vacilantes e subjetivos – sobrevivem desde a antiguidade e as sociedades que moldaram.
   A civilização é definida pelo direito e pela arte. As leis governam o nosso comportamento exterior, ao passo que a arte exprime nossa alma. Às vezes, a arte glorifica o direito, como no Egito; às vezes, desafia a lei, como no Romantismo.
   O problema com abordagens marxistas que hoje permeiam o mundo acadêmico (via pós-estruturalismo e Escola de Frankfurt) é que o marxismo nada enxerga além da sociedade. O marxismo carece de metafísica – isto é, de uma investigação da relação do homem com o universo, inclusive a natureza. O marxismo também carece de psicologia: crê que os seres humanos são motivados apenas por necessidades e desejos materiais. O marxismo não consegue dar conta das infinitas refrações da consciência, das aspirações e das conquistas humanas.
   Por não perceber a dimensão espiritual da vida, ele reduz reflexivamente a arte à ideologia, como se o objeto artístico não tivesse outro propósito ou significado além do econômico ou do político.
   Hoje, ensinam aos estudantes a olhar a arte com ceticismo, por seus equívocos, suas parcialidades, suas omissões e ocultos jogos de poder. Admirar e honrar a arte, exceto quando transmite mensagens politicamente corretas, é considerado ingênuo e reacionário. Um único erudito marxista, Arnold Hauser, em seu épico estudo de 1951, A história social da arte, teve bom êxito na aplicação da análise marxista, sem perder a magia e o mistério da arte. E Hauser (uma das influências iniciais do meu trabalho) trabalhava com base na grande tradição da filologia alemã, animada por uma ética erudita que hoje se perdeu.
   A arte é o casamento do ideal e do real. Fazer arte é um ramo da artesania. Artistas são artesãos, mais próximos dos carpinteiros e dos soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com sua retórica inflacionada e autorreferencial. A arte usa os sentidos e a eles fala. Funda-se no mundo físico tangível.
   O pós-estruturalismo, com suas origens linguísticas francesas, tem a obsessão pelas palavras e, com isso, é incompetente para interpretar qualquer forma de arte além da literatura. O comentário sobre arte deve abordá-la e descrevê-la em seus próprios termos. Deve-se manter um delicado equilíbrio entre os mundos visível e invisível. Aqueles que subordinam a arte a uma agenda política contemporânea são tão culpados de propaganda e rigidez literal como qualquer pregador vitoriano ou burocrata stalinista.

Quem Paga Essa Conta?

(artigo de Oswaldo Almeida Jr e Paulo Roxo Barja)

     Não é novidade que os investimentos em arte e cultura sejam vistos, por boa parte dos gestores públicos, como dinheiro jogado fora. Os argumentos usuais são o de que haveria áreas também deficitárias em que o recurso seria mais importante e o de que dinheiro público não deve servir à manutenção de artistas que, “se fossem bons mesmo”, deveriam buscar sua subsistência no mercado. Há aqui, no entanto, um vício de origem. É comum que se veja o trabalho com cultura como algo importante para artistas e produtores, mas não para a população. Em outras palavras, há quem ignore o valor do trabalho artístico como ação voltada à comunidade e pense que a verba para cultura serve apenas para que os artistas paguem suas contas e “façam festas”. Pensando assim, caem no senso comum de indicar diversas áreas em que o recurso seria melhor aproveitado.

     No entanto, são raras as críticas a investimentos na área de desenvolvimento econômico. Os milhões investidos em parques tecnológicos ou a renúncia fiscal voltada à atração de empresas são vistos como investimento necessário e urgente. Mas esses recursos não beneficiam diretamente a população; assim como na área da cultura, vão para agentes que (espera-se) transformarão o recurso em resultados para o cidadão. Mesmo em áreas como Saúde, o recurso público é destinado a profissionais que, a partir disso, criam ações voltadas ao atendimento das pessoas. Assim, por que só os agentes culturais são vistos como “aproveitadores do dinheiro público”?

     Na Cultura, ao contrário do que ocorre na economia, os números de atendimento à população parecem não ter importância, mesmo com dados concretos a justificar os investimentos. Muitos gestores – e parte da sociedade – ignoram os resultados da ação cultural no desenvolvimento humano (algo intangível, subjetivo); assim, quando se fala em cortes no orçamento, começam cortando recursos da Cultura. Imagine agora o que aconteceria se as pessoas se recusassem a ouvir o relato de um amigo que defendesse o corte de verbas para Cultura, mas quisesse contar suas andanças pelos museus de Paris ou suas leituras mais recentes. Chato, né?

     Para avaliar a falta que as ações artísticas fariam no cotidiano de uma população, imaginem que por um dado período todos os cinemas e teatros fossem fechados e todos os shows e saraus proibidos, assim como as festas de cultura popular e as aulas de Arte nas escolas. Há quem defenda isto, “em nome da ordem e da produtividade”! Mas viver assim seria triste, e pouco humano...

     Felizmente, a arte dispensa autorizações para sua realização. Independentemente do poder público e da verba, a arte continuará existindo – e resistindo. Mas, sem recursos, a população ficará sem acesso à cultura produzida em sua comunidade. Sem recursos públicos, os resultados do trabalho artístico e cultural ficarão restritos a poucos privilegiados. E o povo ficará sujeito ao mínimo que o Estado estiver disposto a oferecer: o mínimo de renda, o mínimo de cultura, o mínimo de saúde. Cuidado.