9 de outubro de 2017

Mais que nunca, é preciso sonhar

(“Os Gigantes da Montanha” e o Grupo Galpão)

Fui ao teatro (re)ver o Grupo Galpão e saio com a impressão de que a beleza na Arte, a partir de um certo ponto, ultrapassa o próprio limite das palavras. Paradoxo: ainda assim, sou impelido a escrever. E por razões objetivas: no Brasil de 2017, é preciso assistir “Os Gigantes da Montanha”, montagem do grupo para o texto de Luigi Pirandello.
Sim, vivemos num tempo em que a beleza chega a adquirir conotação subversiva - principalmente quando aliada à excelência da representação. Para dar um exemplo: a caracterização antológica do ator Paulo André como personagem feminina na peça é capaz de ofender certas “pessoas na sala de jantar” (como diriam os Mutantes). Pior para os que se ofendem. Nestes tempos difíceis, em que setores (ultra)conservadores chegam a pedir censura a exposições e apresentações artísticas (na verdade “exigem”, o que apenas explicita seu caráter autoritário), é reconfortante ouvir o Galpão emendar o final de uma das músicas com a exclamação: “Censura não!”
Pirandello morreu às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Certamente compreendia os graves tempos que estavam por vir. Poucos anos depois, Walter Benjamin passou a alertar sobre a mudança de percepção que se operava nas pessoas a partir da reprodutibilidade técnica nas obras de arte. Pois bem: o teatro nunca se curvou à mera reprodutibilidade. O acaso sempre está presente, e por isso mesmo a aura nunca se perde. Curioso: um seriado famoso na TV dos anos 1990 avisava que “a verdade está lá fora”. O Galpão viaja pelo Brasil confirmando que “sim, a verdade está AQUI fora” – e é tanto mais impactante quanto mais se revela através do registro de fábula.
A cada época, seus desafios. Temos os nossos, e não falo (só) de manter as contas em dia: trata-se de lutar inclusive pelos direitos mais fundamentais. Nos últimos tempos, a imprensa (!!) tem dado espaço a políticos que defendem abertamente a imposição de limites à liberdade de expressão, propondo inclusive sanções e multas aos libertários. Pois bem: no passarán, caros censores! Temos a fábula. E fábulas como a de Pirandello prestam-se a múltiplas interpretações e questionamentos; ler, ouvir, cantar e representar são atitudes que enriquecem a própria experiência humana.
Voltando à peça: logo no início, quando a brancaleônica trupe mambembe perambula em busca de um lugar para apresentar seu espetáculo, ficamos sabendo que fantasmas não assustam artistas. Na verdade,

a Arte faz ponte
entre o pleno Aqui-Agora
e o reino do Além.

A última cena, aquela que Pirandello contou mas não escreveu, trata do embate dos artistas com os Gigantes. Que não são propriamente gigantes, o texto explica: trata-se de pessoas que chegaram “no alto da Montanha” com muito esforço, mas que, na caminhada, embruteceram, tornaram-se de certo modo insensíveis – esquecerem-se, talvez, de sua própria humanidade. Culpa do Empreendedorismo ou da Meritocracia? A peça estimula fortemente a reflexão, neste momento em que artistas, buscando seu lugar na praça, são pressionados a se converterem em “empresas de um homem só” (as MEIs).
A peça, escrita na década de 1930 e montada pelo Galpão em 2013, torna-se ainda mais atual agora. Os artistas, armados de figurinos, vozes e sonhos, caminham para se apresentar diante dos Gigantes. Retroceder? Nunca. Temer? Jamais.
Ao fim da peça (na verdade, o fim ainda está por escrever), resta-nos agradecer ao Galpão pelo exemplo dado nestes primeiros 35 anos de sua trajetória: sem concessões, dando sempre coerência aos nossos sonhos. Até mesmo depois do espetáculo: nesta cidade que um dia abrigou o Pinheirinho (invadido e desocupado por Gigantes da Montanha fardados), passavam das dez da noite quando encontramos os atores saindo do teatro. Cansados, após mais uma jornada de belezas, eles nos mostram que, sim, sempre há tempo para um abraço. E que ninguém ouse censurar o afeto, que é e sempre será revolucionário.

É preciso que sonhemos,
principalmente acordados;
que encaremos os Gigantes
(na rua e até no Senado)
e saibamos exprimir
com Arte o nosso recado.

P.R.Barja