29 de agosto de 2014

whatsapp (conto curto)


     Ela andava triste, cabisbaixa, quando ouviu que a chamavam. Levantou o rosto e olhou para seu interlocutor, que perguntava:
   – Ei, o que houve? Por que está desse jeito? Sua beleza anda opaca...
   – Foi o resto da vida inteira que me fez assim. Agora, quase não durmo. Quando deito, ele vem me visitar...
   – Ele quem?
   – O demônio.
     Ela não teria dito isso se não tivesse percebido que o rapaz tinha asas.
   – Ah, que bobagem... Carpe Diem... aproveite o dia! O demônio tem medo de gente alegre.
    Ele abriu então as asas – eram imensas – e esticou a mão para ela. Voaram juntos. E dançaram, sorriram... foram felizes. Quando ele a deixou em casa (pela janela!), a moça emanava luz. Deitou-se e dormiu imediatamente.
     Naquela noite, quando o demônio se aproximou da cama, ela só abriu um olho e disse: BU!! E isso, esse simples “BU!!” impregnado de alegria brincalhona, assustou tanto o demônio que ele nunca mais voltou.

Paulo R. Barja

26 de agosto de 2014

Um Século, Um Segundo (um poema-ponte entre Física e Comunicação)


Um século atrás:
Física Quântica
(Planck, De Broglie, Bohr, Heisenberg...)
Pacotes de energia
Caráter dual da matéria
(partícula - precisa   ou   onda - difusa ?)
Princípio da Incerteza
(se a gente sabe "onde", não sabe "quando")
A OBSERVAÇÃO afeta O OBSERVADO

Um segundo atrás:
Jornalismo
Pacotes de notícias
Caráter dúbio da matéria
(o fato depende da fonte?)
Padrões de manipulação
(o que couber a gente publica)
A OBSERVAÇÃO afeta O OBSERVADO
(a tal ponto
 que o ato de observar 
 chega a cria novos fatos)

P.R.Barja

24 de agosto de 2014

As Duas Portas (crônica)


Outro dia fui levar minha filha a um encontro com colegas de escola. Não conhecia o endereço, mas imaginei que fosse na região “mais nobre” da cidade. Esse “mais nobre” vai assim mesmo, entre parênteses, por se tratar de expressão questionável, já que utilizada como eufemismo para outra expressão, menos elegante: “mais cara”.
Enfim: era lá mesmo. Estacionei e, ao me aproximar da entrada, a surpresa: havia duas rampas diferentes conduzindo a duas portas diferentes. Aliás, corrijo-me: não eram portas e sim pesados portões metálicos. No alto de cada um, inscrições que explicavam tudo: de um lado, “moradores”. Do outro, “visitantes”. Naturalmente, logo ficou claro para mim que a segunda palavra era outro eufemismo: por “visitantes”, entenda-se “todos os demais”, “os outros” (ou, em última análise e para lembrar de um episódio pessoal bastante chato, “forasteiros”).
Do lado de dentro, seguranças observavam atentamente os candidatos à entrada na fortaleza (juro que estou me segurando para não poluir o texto inteiro com aspas). Além dos seguranças, claro, as indefectíveis câmeras de vídeo. Até aí, vocês podem argumentar que são questões de segurança e tal.    Mas o problema todo é que as duas portas ficam exatamente uma ao lado da outra, sem nenhuma divisória, ou seja: a pessoa que subiu a rampa – seja da esquerda ou da direita – chegará às duas portas ao mesmo tempo. Pode-se inclusive imaginar facilmente a situação de um morador subindo por um lado e um visitante (seguro as aspas) de outro, chegando ambos, ao mesmo tempo, diante das mesmas portas.
Pergunto, do alto da minha humilde ignorância: em que medida a existência de duas portas “etiquetadas” (não aguentei e coloquei as aspas agora) garante a segurança de quem quer que seja?
Voltei para casa incomodado com aquilo. Para mim, só há uma explicação: não se trata de segurança e sim de discriminar, separar artificialmente uns dos outros. O caminho é praticamente o mesmo, porém “vocês entram por aqui; os demais, por ali”.
A situação nos remete aos aeroportos europeus, em que a entrada num país ocorre a partir de filas separadas para cidadãos europeus e “os outros”. Embora questionável, pode-se argumentar que neste caso trata-se de protocolos diferentes, envolvendo consulta a documentos diferentes – e que a entrada ocorre por guichês diferentes. No caso do prédio VIP (sem aspas), a cabine é única: as mesmas pessoas administram a entrada pelos dois portões. Além disso, nenhum documento foi pedido para mim: fui julgado, creio, simplesmente pela aparência.
O portão dos visitantes abriu-se para mim. Entrei e imediatamente andei um metro para o lado, de modo que um segundo depois de entrar eu já seguia a trilha exata dos moradores.
Confesso que muitas vezes não consigo compreender coisas simples e me sinto meio burro. Foi o que senti ali, ao estranhar algo que para a maioria das pessoas talvez já seja natural.
Meu questionamento: até que ponto é natural encarar este tipo de separação como algo natural?

P.R.Barja

23 de agosto de 2014

Ali, naquele bairro simples (crônica)


“O morro não tem vez
mas se derem vez ao morro
toda a cidade vai cantar”
- Vinícius de Moraes

Equipe da E.E.Francisco Marques, Campo dos Alemães,
S.J.Campos: gente que, definitivamente, faz a diferença

  Quero contar o que vi acontecer ali, naquele bairro simples, que não costuma aparecer nos jornais (as eventuais notícias insistem em vincular a região a cenas tristes, mostrando uma visão limitada e por isso mesmo deturpada de uma realidade bem mais bela).

  Sim: naquele bairro tão simples, a beleza transparece nos olhos e corações, surge – espontânea – aqui e ali. Mas existe um local de onde a beleza se irradia. E sabem qual é o núcleo da beleza, ali, naquele bairro simples?

  É a escola.

  Ali, naquele bairro simples, tem gente que trabalha e se dedica a mudar para melhor não apenas o bairro como também a cidade. Gente que, durante a semana, dá aula e estuda; aos fins de semana, enfeita sua escola (sua, sim!) e convida os amigos pra festa. Gente que, em pleno sábado (ou domingo), leva os filhos à escola para fazer balé, tocar violino e pintar telas maravilhosas (são guiados por mãos de fada).

  Passei a manhã admirando e me comovendo com tanto trabalho bem feito por gente de talento que a mídia não mostra. É gente como essa e trabalho assim, nesse bairro simples, que me inspira todo dia.

  Sei que talvez essas pessoas nunca fiquem sabendo do texto que escrevo agora, emocionado. Por que escrevo, então? Porque desejo que muitos, que todos saibam que, perto da gente, tem gente nesse exato momento melhorando a rua, o bairro – melhorando o mundo.

  A eles, nossa gratidão.
P.R.Barja

1 de agosto de 2014

Versos A Moraes

(um poema da madrugada pós-ValeSul)


O Método do Grande Irmão


Agosto - mês de cachorro louco, dizem alguns  -se aproxima. E eis que a CCR Nova Dutra adota o método 1984: anuncia o aumento dos pedágios... SEM utilizar a palavra “aumento”! Nem sequer o termo “reajuste” é mencionado.
O informativo (fartamente) distribuído aos motoristas (em cada um dos muitos pedágios da Via Dutra) diz apenas que “passam a vigorar novas tarifas de pedágio da Rodovia Presidente Dutra”. Lança, em seguida, um singelo convite à população:
“Conheça os valores das tarifas: ...”
Imagino que os próximos comunicados sobre aumento no valor do pedágio falarão de “redução com sinal trocado”. Num estágio mais avançado de desfaçatez, talvez cheguem a festejar a “ótima notícia: valores mais adequados para o pedágio”!
Não é novidade: na sociedade descrita por George Orwell no livro 1984 (escrito em 1948), simplesmente altera-se o registro do passado, para cercear qualquer possibilidade de análise crítica. Deste modo, por exemplo, um aumento de R$2,50 para R$2,70 pode ser anunciado como:
“Ótima notícia! Alteração do pedágio para o valor reduzido de R$2,70”
As pessoas, nesse caso, seriam levadas a crer que houve um decréscimo em vez de um aumento, pois o valor antigo seria alterado em todos os registros para parecer que houve uma queda, digamos, de R$3 (valor fictício) para "apenas R$2,70".
Estejamos atentos.
31/julho/2014