24 de agosto de 2014

As Duas Portas (crônica)


Outro dia fui levar minha filha a um encontro com colegas de escola. Não conhecia o endereço, mas imaginei que fosse na região “mais nobre” da cidade. Esse “mais nobre” vai assim mesmo, entre parênteses, por se tratar de expressão questionável, já que utilizada como eufemismo para outra expressão, menos elegante: “mais cara”.
Enfim: era lá mesmo. Estacionei e, ao me aproximar da entrada, a surpresa: havia duas rampas diferentes conduzindo a duas portas diferentes. Aliás, corrijo-me: não eram portas e sim pesados portões metálicos. No alto de cada um, inscrições que explicavam tudo: de um lado, “moradores”. Do outro, “visitantes”. Naturalmente, logo ficou claro para mim que a segunda palavra era outro eufemismo: por “visitantes”, entenda-se “todos os demais”, “os outros” (ou, em última análise e para lembrar de um episódio pessoal bastante chato, “forasteiros”).
Do lado de dentro, seguranças observavam atentamente os candidatos à entrada na fortaleza (juro que estou me segurando para não poluir o texto inteiro com aspas). Além dos seguranças, claro, as indefectíveis câmeras de vídeo. Até aí, vocês podem argumentar que são questões de segurança e tal.    Mas o problema todo é que as duas portas ficam exatamente uma ao lado da outra, sem nenhuma divisória, ou seja: a pessoa que subiu a rampa – seja da esquerda ou da direita – chegará às duas portas ao mesmo tempo. Pode-se inclusive imaginar facilmente a situação de um morador subindo por um lado e um visitante (seguro as aspas) de outro, chegando ambos, ao mesmo tempo, diante das mesmas portas.
Pergunto, do alto da minha humilde ignorância: em que medida a existência de duas portas “etiquetadas” (não aguentei e coloquei as aspas agora) garante a segurança de quem quer que seja?
Voltei para casa incomodado com aquilo. Para mim, só há uma explicação: não se trata de segurança e sim de discriminar, separar artificialmente uns dos outros. O caminho é praticamente o mesmo, porém “vocês entram por aqui; os demais, por ali”.
A situação nos remete aos aeroportos europeus, em que a entrada num país ocorre a partir de filas separadas para cidadãos europeus e “os outros”. Embora questionável, pode-se argumentar que neste caso trata-se de protocolos diferentes, envolvendo consulta a documentos diferentes – e que a entrada ocorre por guichês diferentes. No caso do prédio VIP (sem aspas), a cabine é única: as mesmas pessoas administram a entrada pelos dois portões. Além disso, nenhum documento foi pedido para mim: fui julgado, creio, simplesmente pela aparência.
O portão dos visitantes abriu-se para mim. Entrei e imediatamente andei um metro para o lado, de modo que um segundo depois de entrar eu já seguia a trilha exata dos moradores.
Confesso que muitas vezes não consigo compreender coisas simples e me sinto meio burro. Foi o que senti ali, ao estranhar algo que para a maioria das pessoas talvez já seja natural.
Meu questionamento: até que ponto é natural encarar este tipo de separação como algo natural?

P.R.Barja

Um comentário:

  1. Lembrei-me de uma anedota:

    Pessoas consideradas prepotentes resolveram provar que isto não era verdadeiro.Para isto marcaram uma grande reunião onde todos deveriam ao microfone fazer uma declaração. O primeiro (considerado prepotente) pegou microfone e disse: - Eu não sou ninguém!
    Assim repetiu por várias vezes. O microfone passava e as pessoas diziam as mesmas palavras diante de todos.
    Estava por lá um mendigo com vestes simples e levemente confuso.O tal microfone por engano, caiu em suas mãos. Ele sem entender direito, repetiu as mesmas palavras que ouvira dos outros. "Eu não sou ninguém".
    Foi grande o alvoroço. Todos ficaram indignados: "Como um maltrapilho e confuso como este homem pode considerar-se "ninguém" igual a gente?"

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