"O REI ESTÁ NU!" - essa é certamente a frase que ressoa em muitos dos espectadores da peça FOGO FÁTUO, em cartaz no SESC Santana até 27/5. Trata-se de um trabalho vigoroso que tem como uma de suas maiores virtudes a profunda honestidade que propõe nas relações entre as diversas instâncias presentes (de um modo ou de outro) em cena: escritor, ator, indivíduo, público, cidadão, sociedade, criador/criatura... "e o diabo a 4".
Nunca é demais lembrar que o mito é, talvez por definição, atemporal - assim como a questão do criador-em-crise (presente "dia sim, outro também") em tantos de nós, reconheçamos. Mas é claro que o tema ganha relevância nesses "tempos modernos" em que a dupla PROZAC e PROJAC parece comandar o imaginário (e o real) de boa parte da sociedade. Se a meta é "crescer e aparecer" a todo custo, de preferência sorrindo e mandando beijinho pra galera, nega-se cada vez mais o direito à crise, ao tempo de amadurecimento da criação, ao silêncio necessário do criador. Tudo é ritmo, tudo é pressa, os fins justificam os meios e algo acaba se perdendo no "Vale Tudo das Artes".
FOGO FÁTUO propõe um respiro necessário nessa loucura. Poderia ser receitada como "prescrição médica" para alguns, contra a mentalidade fast food tão presente em nosso cotidiano. Nesse sentido, é fantástico o início da peça, que de cara já propõe uma quebra de ritmo: somos inseridos no tempo-sem-tempo (o fade-out final poderia explorar ainda mais isso, com as luzes baixando lentissimamente para nos lembrar de respeitar este tempo-sem-tempo do Escritor criando. Talvez alguns tenham pressa de bater palma e levantar, mas outros vão captar a mensagem).
O trabalho é um típico work-in-progress: logo após a apresentação do último sábado, pudemos acompanhar um pouco do sempre instigante processo de (re)criação, com sugestões sendo coletadas e compartilhadas entre criador e criatura. Mas, afinal, quem é quem? Nem é o caso de fazer a pergunta, uma vez que ambos criam e são criados em cena. E aqui temos um fato curioso: a nítida diferença de desenvoltura cênica entre Hélio Cícero e Samir Yazbek (nem seria justo exigir “paridade” aqui) colabora inclusive para trazer novas camadas de leitura a alguns trechos da peça. Insistente, a pergunta “Quem é você?” é provocadora e essencial para este Escritor em busca de uma pista criativa – que pode vir na forma de um pacto proposto por Mefisto em crise.
Apenas discordamos de um pequeno trecho do texto de apresentação no programa da peça: a crise compartilhada entre Fausto e Mefisto (este, auxiliado pela interpretação soberba de Hélio Cícero), em vez de gerar descrença, acaba sendo um último e maravilhoso recurso de sedução. Uma espécie de "canto do cisne", ao qual é praticamente impossível o Escritor manter-se surdo. O pacto, agora democratizado, ressurge como solução digna para ambas as partes. Afinal, se a "outra" alternativa é a proliferação da maldade gratuita, talvez ainda seja melhor garantir um espaço para Mefisto nesse mundo.
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